1994-09-20

A GRANDE FRAUDE

Tono agitou-se no sono, fazendo Maria Ivone despertar. O sol entrava no quarto, através das frinchas das persianas. Raios de luz atravessavam-no, gerando pontos luminosos por todo o lado.
Maria Ivone epreguiçou-se, afagou Tono que sossegou e puxou a roupa da cama para trás. Levantou-se devagar; sentia a cabeça pesada. Puxou ligeiramente a persiana mas a luz do sol era demasiado forte. Era domingo. A noite de sábado tinha sido uma noite longa.
Tono acordou, levantou-se da cama e saiu do quarto dizendo bom dia a Ivone. Tinha na ideia que esse dia era um dia importante, daqueles em que uma pessoa levanta-se sabendo que há alguma coisa importante para fazer.
- Vamos para a praia ?
- Primeiro comer - lembrou Tono - depois praia.
Ao sair, Tono descobriu qual a razão da importância desse dia. Era dia de eleições. Para Tono eram importantes, pois eram legislativas, e era possível que os eleitores escolhessem um novo primeiro-ministro. O partido do governo estava aí há demasiado tempo, e a população estava a ficar descrente. Porque nunca lhe tinha agradado este governo, Tono tinha presente que devia usufruir desse dever cívico. Era só procurar um terminal e votar. Julgava haver um perto do mercado.
- Ivone não há um terminal perto do mercado?
- Julgo que sim. Ontem quando lá fomos pareceu-me ver um. Porquê, não tens dinheiro?
- Tenho sim, vou é votar. Tu não vais?
- Estou de férias.
- E então? não tens o teu cartão?
- Claro que tenho. Sem cartão não há dinheiro. Mas votar numa máquina...
- É a mesma coisa. Bem vamos lá tomar o pequeno almoço.
Tono não percebeu qual a razão da aversão de Ivone ás máquinas de voto. Sendo ela uma informática, sabia perfeitamente como o sistema funcionava e quais as vantagens. Desde que o sistema de voto tinha sido alterado as abstenções tinham diminuído e estabilizado. As consultas ás populações tinham aumentado através de referendos de âmbito regional e alguns nacionais, conseguindo uma maior aderência das pessoas à vida publica. O cidadão conseguia cada vez mais identificar-se com o político que tinha elegido, podendo exigir-lhe que defendesse os seus direitos e interesses legítimos.
Foram comer e em seguida Tono quis ir votar. Ivone pensou para ela que eram muito diferentes. Não se conheciam bem, andavam juntos há poucas semanas. Tinham-se conhecido no inicio do verão. Começaram a sair juntos á noite. Sentiam-se bem um com o outro. Como o seu período de férias coincidia, resolveram passar algum tempo fora. Meteram-se no carro e arrancaram. Estavam a ser uns bons dias de férias. Ivone pensou que estava mesmo a precisar de uns dias como aqueles. Nada planeado, nada de horários, nem de obrigações. Dormir, praia e quando lhes apetecia meter no carro e descobrir novos sítios. Não conhecia aquela zona e estava a gostar. Tono conhecia as melhores praias e os melhores sítios para dormir e para comer. Para a noite sabia onde beber um copo e onde dançar. Tono era um sonhador e isso tinha agradado a Ivone sempre agarrada ás coisas materiais.
O pensamento de Ivone fugiu para tudo o que tinha passado nos últimos tempos. Toda a pressão dos prazos para terminar o trabalho e todo o stress devido ao esquema em que tinha entrado. Ainda hoje, quase dois anos de ter aceite a proposta que lhe fizeram sentia remorsos por isso.
Agora que tinha terminado o seu trabalho e que era chegado o dia em que esses dois anos iam ser testados sentia que mais cedo ou mais tarde, ia ter que contar tudo a alguém. Talvez Tono fosse essa pessoa. Ivone pensou no dinheiro que ia receber se tudo corresse como planeado. Poderia tirar uns meses de férias e ir gastar esse dinheiro para outras paragens. Correr mundo. Se Tono fosse a pessoa certa, talvez uma lua-de-mel.
Enquanto se dirigiam para o terminal, Tono começou a falar das eleições. Mostrou o seu entusiasmo pelo acto que ia fazer e sublinhou a importância desse dia. Ivone ficou surpreendida pelo entusiasmo que ele demonstrava. Interrogou-se se seria genuíno. Para ela a política sempre tinha sido uma maneira de se chegar ao topo mais rapidamente. Marketing puro.
Passaram o resto da tarde na praia. A maré estava baixa e o areal era imenso. Ao fundo as pessoas passeavam-se nas rochas, com as crianças brincando nas poças e descobrindo a vida animal aí existente. Havia algumas pranchas nas ondas. Estava perfeita aquela tarde. Ao entardecer ainda se deixaram ficar. A praia foi sendo abandonada aos poucos e agora poucos restavam. Começava-se a ver as luzes dos barcos que passariam a noite no mar, regressando na manhã seguinte com as redes cobertas de peixe. Conversaram sobre a vida dos pescadores e Tono contou algumas histórias de colegas de escola cuja vida viria a ser o mar. Tinha crescido numa pequena vila à beira mar e os seus amigos de infância eram os filhos dos pescadores. Várias recordações vieram-lhe á mente. Poderia ficar horas a contar histórias desse tempo. Ivone escutava-o atenta e divertida.
Ao saíram da praia rebentaram foguetes e deram conta que eram os festejos das eleições. O partido governamental tinha ganho e os festejos eram imensos. Tono e Ivone tiveram sensações diferentes. Ele, desilusão, ainda mais porque a diferença tinha sido mínima. A Ivone uma sensação de emoção percorreu-lhe o corpo. Sentiu lágrimas vir aos olhos e apeteceu-lhe dar pulos de alegria. De seguida sentiu um grande alivio apoderar-se dela, este momento significava a realização de tudo o que sonhara e que tanto tinha sofrido para aí chegar. Tono apercebeu-se da sua emoção e interrogou-a:
- Que tens? São os resultados que te deixam assim?
Ivone olhou para Tono e percebeu nesse momento que entre eles nada iria acontecer. Tinha-se sentido muito bem com ele e passou alguns dos melhores momentos da sua vida. Mas, percebia-o agora, Tono apareceu-lhe numa altura em que tinha iniciado um percurso bem definido da sua vida e cujo fim estava agora a alcançar. Tono não podia entrar no comboio que ela tinha tomado.
- Sabes Tono, foi para isto... - interrompeu-se - não sei como te dizer. Durante dois anos trabalhei muito num projecto. Era um projecto que se fosse bem sucedido significaria a minha independência económica, e seria a minha grande realização. Vivi exclusivamente para o realizar. Hoje esse projecto terminou. E foi bem sucedido.
- És partidária do governo? - interrogou-a Tono.
- De certa maneira sim. Mas penso que o melhor é não falarmos nisso. - Ivone sabia que nunca poderia contar a verdade a Tono.
Ele ficou intrigado com a resposta de Ivone. De repente percebeu que não a conhecia. Ivone pouco falava de si, vivendo simplesmente o momento com prazer. Pouco ou nada sabia do seu passado.
- Tenho que fazer um telefonema - disse Ivone.
- Está ali uma cabina. Tens moedas?
- Tenho cartão. Espera um pouco.
Tono olhou para ela enquanto atravessava a rua. Gostava da sua maneira de saltitar ao atravessar a rua. Queria conhecer melhor Ivone; sentia-se bastante apaixonado por ela e o seu mistério encantava-o; perdia-se nos seus olhos.
Ivone regressou com um ar ainda mais misterioso.
- Tenho que partir já.
- Porquê, que aconteceu ?
- Nada. Escuta Tono, o que se passou entre nós foi muito bom. Nunca te esquecerei e gostava de te ter conhecido há mais tempo. Talvez tudo fosse diferente agora... Não te queria magoar, mas... Isto estava planeado e tu não podes entrar nos planos... Desculpa.
Tono não conseguiu dizer nada.
- Não digas nada. Talvez daqui a alguns tempos nos encontremos e então...
Beijou-o e afastou-se, deixando Tono especado no passeio. Quando reagiu, já ela estava a parar um táxi e abrindo a porta saltou lá para dentro.
- Espera Ivone.
- Tchau - disse ela.
Ivone não virou a cabeça. Nunca poderia explicar a Tono e mesmo que o fizesse este nunca aceitaria. Agora tudo o que tinha a fazer era dirigir-se ao aeroporto e partir para bem longe. Nem passaria pelo hotel a buscar as suas coisas. Poderia comprar tudo de novo. Aquele dinheiro iria para já ser aproveitado em grandes passeatas pelas capitais, fazendo compras, gastando o dinheiro sem olhar aos preços. Sair do país era o mais importante neste momento.
Ivone sentiu-se orgulhosa de si. A introdução daquele vírus no sistema eleitoral tinha sido um sucesso. A margem de vitória que eles tinham planeado alcançar tinha sido cumprida. Agora como compensação, a sua conta bancária tinha muitos mais zeros. E em dinheiro estrangeiro. Restava-lhe tentar gozá-lo tranquilamente.


(Este texto foi escrito para um jornal que o meu irmão editava em 1994)